segunda-feira, 31 de março de 2008
Morte digna
Vamos aprofundar uma reflexão iniciada neste espaço há quase dois anos.
Em que medida é desejável o prolongamento da vida usando recursos extremos?
Quem se beneficia desses procedimentos?
A importância das tecnologias é óbvia. Mas onde estão o interesse do paciente que sofre e a proteção da sua dignidade humana?
Imagine-se o drama dos pais de fetos com defeitos congênitos, para os quais a medicina de ponta recomenda intervenções radicais até antes do nascimento. Trinta anos atrás, médicos experientes costumavam dizer: a natureza é sábia; deixemos que ela selecione quem deve nascer. Hoje, a tecnologia, onipotente e plena de esperança, obriga esses pais a uma decisão terrível: submeterem seus filhos aos procedimentos mais invasores ou se sentirem eternamente culpados de não terem tentado o máximo.
É o mesmo dilema trágico ao se tratar da sobrevida de mãe idosa, com doença grave. Embora o olhar da mãe implore o descanso final, médicos jovens armados com os novos recursos da medicina dizem: vai deixá-la morrer? E se um novo medicamento for inventado? Imensos recursos são investidos em novos equipamentos, que se tornam “indispensáveis” e, em seguida, precisam ser amortizados.
O custo dos tratamentos aumenta pesadamente. E o sofrimento também.
Para quem pode usá-los, proliferam hospitais privados moderníssimos; mas sobram pressões insuportáveis sobre a rede pública de saúde.
O nascimento de uma criança foi transformado, de uma função fisiológica para a qual o organismo da mulher esteve desde sempre preparado, em questão cirúrgico-hospitalar. O número de cesarianas no Brasil é quase o dobro do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O parto, tal qual evento cirúrgico, vê a mulher como recipiente a esvaziar. Só recentemente a onipotência “científica” concedeu procedimentos que a tradição e o bom senso consagraram: permitir bebês nos quartos com as mães e colocá-los sobre seus colos ainda na sala de parto. E as normas hospitalares finalmente reconheceram que as crianças saram mais depressa quando ficam acompanhadas de familiares ou tendo acesso a salas com jogos e pequenas diversões. Já hospitais das regiões muito pobres, carentes de recurso, substituem - em muitos casos com vantagens - as caríssimas e invasivas incubadoras pelas técnicas milenares de “mãe-canguru”.
Enquanto isso, fazemos muito pouco para reverter a lógica de nosso sistema de produção e consumo; e prevenir as moléstias que ele mesmo causa com alimentos pouco saudáveis, contaminação ambiental e emissão de ondas e radiações. As graves doenças geradas pelo nosso tipo de vida são as verdadeiras epidemias modernas. Na França os cânceres cresceram mais de 60% nos últimos 20 anos. Um casal em cada sete é infértil. São também epidêmicas as alergias, as doenças renais e neurológicas e a diabete.As novas técnicas de manutenção de vidas “artificializadas” agridem o senso comum. Elas exigem um corpo de doente infinitamente disponível, ligado a tubos e fios, pronto para intervenções sem cessar, numa verdadeira expropriação desse corpo que não pertence mais ao sujeito; é apenas um manifestador de sintomas.
É o novo reinado das milionárias UTIs, tornadas rotina hospitalar, onde a vida se mantém totalmente dependente de máquinas e químicas. A morte digna cercada pelos parentes e amigos, aspiração atávica da humanidade, desapareceu quase por completo. Os doentes atuais morrem mais sós e mais lentamente, sedados para suportar a agressão de tubos e agulhas. O filósofo Jean-Luc Nancy fez um relato do drama de seu transplante cardíaco e das conseqüências dos recursos para evitar a rejeição, quando recebeu um órgão transformado e reciclado como peça de reposição: “Meu novo coração era um ‘estrangeiro’, a intrusão de um corpo estranho no meu pensamento.” A possibilidade de rejeição instalou nele uma condição de “duplo estrangeiro”. De um lado, o órgão transplantado; de outro, seu organismo lutando para rejeitá-lo e sua vida dependendo agora irreversivelmente da capacidade de enganar o próprio corpo, baixando brutalmente suas defesas imunológicas por mecanismos químicos. Nancy sobreviveu ao transplante, mas morreu após uma década de luta contra um linfoma produzido pelos efeitos dos remédios contra a rejeição. O câncer que emergiu foi um novo estrangeiro ameaçando sua integridade. Isso exigiu novas intrusões violentas, quimioterápicas e radioterápicas, mutilações cirúrgicas, próteses, etc. “Eu acabei por não ser mais que um fio tênue, de dor em dor” induzido pelas possibilidades técnicas. Sua frase final: “Estou reduzido a um andróide de ficção científica, uma espécie de morto vivo.”
Aos que perambulam pelos ambulatórios ou vivem presos a tubos de UTIs é imperioso perguntar se ainda lhes interessa viver, se a qualidade de vida que levam vale a pena. Essa é uma escolha que ninguém deve estar autorizado a fazer por eles, nem a equipe médica mais qualificada. É preciso aprender a assumir a finitude da vida e o enigma do fim. E enfrentar a morte com dignidade e o menor sofrimento possível, estabelecendo seu próprio limite à dor. Morrer é parte integrante do viver; as células começam a envelhecer assim que nascemos. Temos de nos preparar para esse fato inexorável e procurar viver da melhor forma até lá. A morte, embora sempre trágica para os que ficam, encarada com respeito é uma fonte de sabedoria sem igual, estimula a ação e dá sentido à vida. Se a discussão sobre políticas de saúde não levar em conta esses valores, acabaremos submetendo-nos apenas às prioridades de lucro do complexo farmacêutico-hospitalar privado. Seria lamentável. A vida é tudo o que temos. E uma morte digna é um direito humano.
Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional (IRI-USP), presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso (Editora Unesp)
Este texto foi enviado por Analy Uriarte, uma companheira ideológica.
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